Umbanda Hoje

A CORRENTE ASTRAL DE UMBANDA 
Fatos Precedentes e Seu Processo de Formação Espiritual e Materialização no Brasil 

    Ao longo de décadas dentro da Umbanda observamos, tanto nos círculos acadêmicos da religião como nos ensinos doutrinários ministrados dentro dos Templos Umbandistas, pouquíssimas referências – superficiais e contraditórias em sua grande maioria – sobre o título da presente matéria. E assim afirmamos, não como crítica às abordagens rasas e pouco consistentes sobre o assunto, mas sim para atestar a dificuldade de se debruçar sobre assunto de patente complexidade sem levar em conta o processo histórico de formação do Brasil e ainda desprezar a lógica e o bom senso, relevantes instrumentos para se forjar uma coerente explicação sobre os aspectos espirituais e terrenos que deram causa ao advento da Corrente Astral de Umbanda. Mas por que a história do Brasil, a lógica (utilização de raciocínio coerente e concatenado sobre algo ou alguém para alcançar conclusão satisfatória) e o bom senso (prudência, cautela, equilíbrio) são peças essenciais na busca sobre o que é a Corrente Astral/Espiritual de Umbanda? Simples: São estes três principais vetores que nos farão caminhar de maneira segura e constante, alcançando, senão a verdade absoluta, pelo menos um entendimento plausível, aceitável, coerente, harmônico e sadio em relação aos porquês do surgimento da citada Corrente no mundo espiritual, fundamentada em estruturas e diretrizes sólidas, apta, portanto, a se fazer visível e tangível no mundo dos encarnados, pondo em prática o que foi deliberado pela Espiritualidade: A Anunciação da Umbanda-Religião. 

    Iniciemos nossa jornada apresentando um panorama resumido, que é de conhecimento geral, sobre o processo de formação de nosso país, mas que, pela importância que tem nos desdobramentos que ocorreram, merece ser citado, uma vez que é daí, da chegada a então nominada Ilha de Vera Cruz (os navegantes portugueses acharam à época tratar-se de uma grande ilha), depois rebatizada de Terra de Santa Cruz, que surgem, em períodos distintos, os três contatos entre diferentes povos que, mais tarde, aglutinados, gerariam o povo brasileiro. Citemos: 

    1º Contato: Entre os navegantes portugueses e os indígenas. Deu-se de forma amistosa no princípio, vertendo depois para subjugação e escravização dos nativos que, diga-se de passagem, restou fracassada com o tempo. 

    2º Contato: Entre os agora colonizadores portugueses e os primeiros escravos vindos da África Subsaariana (região abaixo do deserto do Saara), para suprir a escassez de mão-de-obra na crescente lavoura. Os primeiros cativos a chegarem em meados do século XVI eram da etnia Banto/Bantu. 

    3º Contato: Entre os escravos africanos e indígenas (escravos ou não) na então colônia portuguesa, propiciando alianças pontuais de tais povos para diversos fins. 

    Antes de avançarmos no texto, necessário salientar que chegaram mais tarde, também como cativos, os Fons, Haussás e outros povos oriundos do antigo Reino do Daomé (atual Benin). A partir do século XIX aportou na colônia portuguesa o último povo africano escravizado a atravessar o atlântico, os Iorubás. 

    Deixando os livros de história autênticos para aqueles que queiram se aprofundar nos vários conflitos, insurreições, movimentos de fuga e resistência, Lei Eusébio de Queiroz, Lei dos Sexagenários, Lei do Ventre Livre etc. durante a escravidão, nosso foco ficará restrito ao aspecto psíquico que inundava o pensar e agir dos envolvidos, crucial para se entender os efeitos mentais danosos surgidos durante tal período, bem como seus reflexos no mundo espiritual e no ciclo de reencarnações das personagens inseridas antes, durante e depois da escravidão: brancos, indígenas e pretos, incluindo aqui,  é claro, os oriundos da miscigenação, os mamelucos (índios com brancos), os mulatos (brancos com pretos) e cafuzos (pretos com índios). 

     Neste ponto devemos, por questões didáticas, abordar em separado dois pontos: A questão psicossocial entre os vivos, os encarnados, as pessoas envolvidas ativa ou passivamente durante a escravidão, e a questão psíquica de expressiva parte destas mesmas pessoas, mas já mortas, sem as vestes carnais, portanto habitando o mundo espiritual, ambos (encarnados e desencarnados) tomados por conceitos, sentimentos e propósitos hostis, como detalharemos a seguir. 

    Já tentaram imaginar como a sociedade daquela época, urbana (povoados, vilas, cidades) ou rural, comportou-se com a chegada dos primeiros navios negreiros trazendo mão-de-obra cativa da África? Espantados, indiferentes, horrorizados com as condições desumanas? Sim, concordamos que a resposta é complexa, repleta de variantes, pelo menos do ponto de vista individual dos habitantes instalados na Colônia. E a nível coletivo? E a sociedade como um todo? Lidou de que forma? Apoiou? Repeliu? Portou-se com neutralidade, indiferença? O que podemos afirmar é que muito antes da chegada do primeiro comboio de navios negreiros foi engendrada e posta em prática pelos mercadores de cativos uma narrativa cruel e bastante eficaz: A de que os escravos eram seres inferiores, sem alma, sem sentimentos, sem cultura, sem educação, pagãos, primitivos etc., e que suas vidas tinham como única finalidade existencial ser a força braçal para os colonizadores europeus. Sim, foi esta a ideia criada, difundida e massificada na então colônia portuguesa pelos diversos atores ligados ao comércio de cativos, que foi absorvida e aceita como verdade, senão por toda, mas pela quase totalidade da sociedade daquela época. Assim sendo, o consciente, e principalmente, o inconsciente coletivo, foram preparados (manipulados, induzidos, sugestionados) para, ao primeiro contato visual com os cativos, já terem opinião e comportamento prestabelecidos, fruto de violenta carga de informações falsas disseminadas. Qual seria a reação se a verdade fosse dita, por exemplo, sobre os cativos serem prisioneiros de guerra resultante de conflitos entre povos da África? Como acham que os habitantes da então Colônia se conduziriam? O que pensariam? Prisioneiros de guerra? Certamente o medo, o pânico e a repulsa explodiriam na mente dos colonos, fazendo-os rechaçar a presença de guerreiros e guerreiras entre eles. 

    Antes de prosseguirmos na análise psíquica dos sujeitos implicados, direta ou indiretamente, no transcurso do período escravocrata, deixamos claro que não se trata de um apanhado profundo sobre psicologia, mas apenas um feixe de luz, necessário ao assunto, a fim de que, com lógica e bom senso, possamos concatenar eventos e circunstâncias que dispararam o gatilho espiritual para o surgimento da Corrente Astral de Umbanda e, por desdobramento, da Umbanda-Religião. 

    Como explicado, a máquina escravocrata (grandes companhias, empresários com lastro financeiro, atravessadores, distribuidores, vendedores, revendedores etc.) preparou o terreno criando as condições propícias para, quando da chegada dos escravos, os residentes na colônia vissem como normal e necessário a presença dos rotulados subumanos/sub-humanos (os cativos) em solo colonizado como mão-de-obra legitimamente subjugada e ferramental imprescindível aos interesses comerciais, tanto da Coroa Portuguesa quanto dos Senhores de engenho e, mais tarde, dos Barões do café. Estava consumado o estratagema de domínio psicológico da sociedade, fazendo-a pensar e agir conforme os interesses mercantis da época, num ciclo permanente de alimentação recíproca de visão negativa dos escravos. E o que dizer do estado psíquico de pessoas lançadas à condição de escravos (com abalo psíquico por conta dos conflitos em si, pela derrota e pela subjugação) ainda em sua terra natal, seja como espólio de guerras (conjunto de bens, riquezas e prisioneiros tomados em razão de vitória em conflitos), seja por outras causas, e mais tarde serem trocados (escambo) como mercadorias por outros produtos, depois desterrados (banidos, expulsos, exilados) e levados a atravessar o oceano em direção à terras desconhecidas, sem esperança de retorno, sob severa vigilância e maus tratos cometidos por indivíduos que não faziam parte de seu universo étnico-geográfico?  

    Chegando ao seu destino final, os escravizados,  também abalados psíquica e fisicamente  por uma travessia demorada, em confinamento, sob condições desumanas, agora se encontravam em solo nunca visto, em que pessoas brancas, com costumes, comportamento e vestuários nunca vistos, além de se depararem com construções estranhas, receberiam mais um golpe em sua via crucis: Olhares de desprezo e ojeriza lhes eram direcionados, efeito de poderosa propaganda negativa entranhada na sociedade colonial pelos gestores do comércio de escravos. 

    É de aceitação geral que a escravidão no Brasil começou em meados do século XVI, estendendo-se até o final do século XIX. E durante este longo período, brancos, negros, índios, mamelucos, mulatos e cafuzos desencarnavam e reencarnavam, carregando em sua “genética” psíquica o desprezo, ódio, preconceito, vingança, medo, e outros sentimentos negativos gerados pela escravidão. No plano espiritual a situação de perseguição, opressão e vingança não cessava, muito embora nem todos os espíritos que estiveram encarnados e vivenciaram o período escravocrata continuassem a se digladiar. Entretanto, outros, depois de reencarnarem, não importando a cor da pele, continuavam a se nutrir inconscientemente da memória espiritual, buscando a desforra pelos sofrimentos de outras vidas. Assim, os outrora algozes tornaram-se alvos a serem atingidos, as vítimas tornaram-se caçadores, espíritos assediando espíritos, espíritos assediando encarnados, encarnados assediando encarnados, numa alternância constante de posições e dimensões (mundo astral e mundo físico). Se o apaziguamento nas esferas espiritual e terrena deu resultado para uns, para um grande número de personagens do nefasto processo de privação psíquica e física, do repugnante sofrimento corporal, da sombria atividade de redução de humanos a mercadorias, o processo de pacificação ainda não tinha obtido solução satisfatória. 

    A Espiritualidade Superior arquiteta então mais um plano de conciliação para as milhões de individualidades espirituais que, como já dito, desencarnavam e reencarnavam ainda dominadas, no todo ou em parte, pelos arquivos mentais de vidas pretéritas em que vivenciaram os horrores e efeitos deletérios da escravidão. Antes, porém, seria necessário organizar e estruturar um núcleo astral sob o comando de espíritos com elevada grandeza para criar bases e diretrizes, fixar atribuições, coordenar, orientar, delegar funções, implantar formas de trabalho, arregimentar espíritos afins com a grande obra, especialmente  entre aqueles que, passando como brancos, pretos, índios, mulatos, mamelucos e cafuzos durante o período escravocrata, já tinham deixado para trás conceitos distorcidos, discriminação, medo, vingança, raiva, revolta etc., aptos, portanto, a auxiliarem outros espíritos e encarnados a caminharem na mesma direção. Surgia no mundo invisível um vigoroso agrupamento de espíritos, conhecido mais tarde como Corrente Astral de Umbanda, primeira etapa da magnífica estratégia de apaziguamento, conscientização, tolerância, conciliação, colaboração, perdão e união entre inimigos/desafetos espirituais, entre estes e os encarnados, entre os encarnados e os espíritos, e entre encarnados e encarnados. Alguns leitores devem estar se perguntando: Por que a recém-criada Corrente Astral se tornou conhecida por este nome? Aqui abrimos parênteses dentro do tema principal para elucidar, mais uma vez utilizando a lógica e o bom senso, dos porquês deste nome (Umbanda). E a resposta é bem mais simples do que alguns possam imaginar, e afirmamos que passa longe, bem longe de algumas hipóteses capengas, teorias alienantes, malabarismos mentais, especulações sem sentido e coerência. E não podemos esquecer também daqueles que usam as redes sociais para difundir explicações e discursos delirantes e com confessável propósito de impor narrativas falaciosas, reflexo da malfadada tentativa de marcar posição identitária que atenda a seus medíocres interesses. 

    Relembremos o que foi mencionado lá em cima sobre o plano engendrado pela Espiritualidade Superior: Surgia no mundo invisível um vigoroso agrupamento de espíritos, conhecido mais tarde como Corrente Astral de Umbanda, primeira etapa da magnífica estratégia de apaziguamento, conscientização, tolerância, conciliação, colaboração, perdão e união entre inimigos/desafetos espirituais, entre estes e os encarnados, entre os encarnados e os espíritos, e entre encarnados e encarnados. E citada Corrente foi planejada sobremaneira para atuar em que lugar? No Brasil, é claro!  Lugar em que o período escravagista originou e alimentou por séculos inimizade, ódio, vingança, discriminações e outros sentimentos e comportamentos negativos. E por lógica e bom senso se tal agrupamento de inúmeros espíritos destinados a cumprir e fazer cumprir as deliberações do mundo extrafísico tivesse que ser conhecido e reconhecido por outras fraternidades do mundo invisível, por certo adotaria um nome compatível com a missão a desempenhar, que guardasse relação direta com as bases, diretrizes e finalidades fixadas;  e nada mais lógico que utilizar o português para tal, idioma oficial, tanto na época colonial, quanto posteriormente. Mas…Umbanda é um termo português? Sim, é. E explicamos: Tal palavra é a junção de outros dois vocábulos, vale dizer, “Um” e “Banda”, fenômeno gramatical conhecido como formação por justaposição (união de duas palavras formando uma terceira palavra), estão presentes (os dois termos) no dicionário da lingua portuguesa e seu significado é aquele que a sociedade dos falantes e literatos de tal idioma dão; fato! Ou você acha coerente, conveniente, lógico e sensato nominar um Movimento Espiritual de distinta grandeza vinculado ao Brasil com uma palavra estrangeira? Claro que não! Por isto, o termo deve ser analisado e ganhar significado à luz das regras gramaticais do idioma da sociedade em que é escrito e verbalizado. Por conseguinte, amparados na lógica e no bom senso, e levando-se em consideração que a Corrente Espiritual foi edificada com a missão de pacificação, conscientização, tolerância, conciliação, colaboração, perdão e união entre inimigos/desafetos durante o período escravagista no Brasil, o vocábulo Umbanda deve ser definido, segundo a língua portuguesa, como União (junção, encontro) das Bandas (partes em desafeto, inimigas, em lados opostos), ou ainda Um= Unidade, significando a busca/finalidade de reunir  em um só corpo, sólido e harmônico, espíritos que ficaram em campos opostos antes, durante e depois da escravidão em terras brasileiras, e Bandas (lados antagônicos), vale dizer, a união de adversários/inimigos, formando um conjunto fraterno (Umbanda). 

    Fechando parênteses, voltemos para exposição principal. 

    E dentro de toda esta engenharia espiritual para aplacar, amenizar, abrandar e suprimir arrogância, ódio, mágoa, vingança, repulsa, medo e outros sentimentos destrutivos surgidos e alimentados principalmente durante o longo período de escravidão, como se daria esta conexão entre oponentes, desafetos, inimigos? Quais estruturas, mecanismos, métodos, formas, caracteres e outros diferenciais seriam inseridos nesta longa e fraternal missão, de maneira a criar um ambiente amistoso, uma atmosfera capaz de envolver em sublimes pensamentos e ações um número incalculável de espíritos antagonistas? E quais pontos em comum entre os opositores poderiam ser explorados para criar uma ponte, um ponto de partida para conectá-los, a fim de proporcionar aproximação e interação entre as partes? Certamente o principal elo que estreitaria espíritos opositores seria o fator religioso, vale dizer, a crença em Deus, não importando o nome pelo qual fosse conhecido e reverenciado. Os indígenas que aqui já estavam eram portadores de crença em um Criador, louvavam suas divindades. Tanto os colonizadores portugueses originais quanto seus descendentes eram católicos, com suas crenças e devoções. Os africanos trazidos como cativos e seus descendentes também portavam crença em um Poder Maior, tinham seus cultos às divindades, conforme o panteão de cada etnia trazida para o Brasil. E toda esta carga teísta/religiosa não se desfez depois da morte física. Ao contrário, constituiu-se em poderosa ferramenta de suporte durante a jornada espiritual. 

    E quanto aos reencarnados, e quanto àqueles que, embora em novas vestes carnais, ainda continuavam, consciente ou inconscientemente, a alimentar medo, ódio, vingança, discriminação e outros sentimentos e práticas negativos? Que pontos em comum poderiam ser capazes de aproximá-los na esfera terrena? Igual àqueles que se encontravam na Espiritualidade, também a crença em um Princípio Criador, seria o principal mecanismo de convergência a ser utilizado para a aproximação de reencarnados antagonistas. Podemos citar ainda outras duas alavancas de estreitamento entre os inimigos/desafetos reencarnados: 

*A crença no mundo invisível e na vida pós-morte física, não obstante entenderem a vida espiritual de forma distinta; e 

*A crença no arrependimento pelos pecados/erros cometidos, o perdão pelos males sofridos, e a possibilidade de regeneração. 

    Ultrapassada esta fase de identificação de vetores convergentes, indispensáveis ao contato, tolerância, conciliação, perdão e união, a Corrente Astral de Umbanda, atenta às peculiaridades de tal missão, entendeu que, como o ponto em comum mais importante entre os opositores, espirituais ou carnais, era a crença em um Princípio Criador, o mais coerente, lógico, sensato, seria abarcar os envolvidos espirituais e físicos dentro de um culto de características religiosas, inserindo-os assim em um ambiente que facilitaria em muito que sentimentos endurecidos e mentes intoxicadas, fossem, pouco a pouco, sendo oxigenadas pelo contato constante, pelo auxílio mútuo e pelas atividades realizadas em conjunto, beneficiando espíritos e pessoas. 

    Mas se a interação entre espíritos e espíritos, e entre encarnados e encarnados, com pontos em comum preestabelecidos (crença num Poder Criador, possibilidade de arrependimento de um lado e perdão do outro, crença no mundo espiritual e regeneração) e tendo em vista que encarnados poderiam se relacionar com encarnados, agora pertencentes a uma sociedade terrena, como ficaria a questão do relacionamento espírito-encarnado? De que maneira os espíritos poderiam se fazer presentes, se fazerem sentidos e ouvidos pelas pessoas? De qual instrumento se valeriam para interagir com o mundo dos vivos, com vistas a terem contato com seus oponentes e assim ser plantada a fecunda semente da fraternidade, que se prestaria a beneficiar as partes conflitantes? Já sabem a resposta, temos certeza: A Mediunidade! A capacidade de comunicação entre o mundo espiritual e o material se perde nas névoas do tempo e é potencialmente comum ao ser humano. Encontramo-na, sob diversas formas e particularidades, nas civilizações antigas como Índia, Pérsia (atual Irã), Babilônia, Egito, Grécia, Roma etc., em que havia o contato com os nominados mortos/sublimados (espíritos despojados de vestimenta carnal). Avançando no tempo, o Espiritismo, nascido em solo francês no século XIX, fruto de uma série de compilações realizadas a partir do contato de Allan Kardec (Hippolyte Léon Denizard Rivail) e auxiliares com a Espiritualidade, só  se concretizou por causa da mediunidade de muitas pessoas que serviram de intermediárias, de médiuns (entre o plano espiritual e o físico), culminando com os livros básicos da codificação espírita. 

    Mas…voltando ao mais importante dentro do quesito Mediunidade, de que maneira espíritos e encarnados, que no passado ficaram em lados opostos durante e depois do período escravocrata, e que ainda se alimentavam de repulsa, poderiam, através da mediunidade, terem um contato mais aproximado, mas estreito, mais intimista, mais fraternal? Sem dúvida a resposta é pela mecânica da incorporação (acoplamento do perispírito do espírito ao perispírito do médium), fenômeno em que, temporariamente, o espírito atuante se vale do sistema psicomotor do medianeiro, para se expressar no mundo físico e cumprir suas tarefas. E foi esta forma de manifestação no campo terreno que a Corrente Astral de Umbanda escolheu, entendendo ser a mais apropriada e de maior envergadura prática para os fins a que se destinaria. 

    Mais uma questão resolvida, a Espiritualidade debruçou-se sobre de que formas e características os espíritos integrantes da Corrente Astral de Umbanda se manifestariam no mundo físico, a fim de serem identificados por arquétipos (padrões/modelos) que os fizessem ser conhecidos (nome, características, linguajar, comportamento, expressão corporal projetada no intermediário/médium) e diversos atributos que os distinguissem entre si, e entre eles e os encarnados. Tendo tal Corrente sido edificada para dirimir, a priori, questões inter-raciais resultantes de mercantilismo perverso ocorridas no Brasil-Colônia/Império (mais tarde a Corrente Astral de Umbanda ampliou seu leque de atribuições), nada mais lógico e coerente do que dar a este culto de características religiosas, a esta religião a surgir, particularidades que expressassem a essência brasileira de tal Movimento. E foram buscar justamente na história do Brasil, especificamente nas personagens-vítimas que participaram da formação social do país, as imagens-símbolo que expressassem genuína brasilidade, a serem utilizadas por uma gama incomensurável de espíritos, consoante o papel a realizar por cada um dentro do Culto. Assim, do indígena extraiu-se os arquétipos Caboclo/Cabocla e do cativo (especificamente dos anciões, símbolo de sapiência) extraiu-se os arquétipos Preto-Velho/Preta-Velha, com seus atributos e características. Sob estas capas-símbolo, os espíritos pertencentes à Corrente Astral de Umbanda, não importando que tivessem tido encarnações como índios, brancos, pretos, mulatos, mamelucos ou cafuzos, poderiam dar início e seguimento ao Culto, com vistas a alcançar os fins para os quais fora pensado. Certamente uma pergunta ainda paira no ar: Que arquétipo espiritual (padrão de apresentação de espíritos) simbolizaria o homem branco? A princípio nenhum, é claro. E a explicação, lógica, coerente e banhada no bom senso, é bem simples: Pelo fato do período escravocrata brasileiro ter surgido pela ação dos portugueses (brancos), sendo este o lado vilão, o lado fustigador, o lado explorador, o lado conivente (a sociedade em geral), o lado opressor/repressor, era natural que o Culto a surgir em solo brasileiro tivesse como figuras-símbolo o indígena, primeiro povo a ser subjugado, e o preto, trazido da África e também dominado, explorado e maltratado. Não significa que neste grande propósito de contato, tolerância, conciliação, perdão e união o elemento branco ficaria à margem. Não, não mesmo! Como já dito as roupagens fluídicas e/ou os caracteres próprios de índios e pretos para se fazerem audíveis e visíveis no novo Culto também seriam utilizados por espíritos que tiveram encarnação como brancos, pretos, mulatos, mamelucos e cafuzos. O diferencial é que, no caso dos espíritos que passaram o durante e pós-escravidão como pessoas brancas, experimentariam a sensação e os efeitos de estarem sob o manto de um dos arquétipos (Caboclo/Cabocla – Preto-Velho/Preta-Velha) que representam os dois povos-vítima do escravismo. Além disto, os medianeiros, os médiuns que seriam preparados e atuariam no Culto por florescer viriam da sociedade e teriam as mais variadas tonalidades de pele, especialmente a branca. 

    Muito antes da Lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888 (Lei Áurea), marco oficial da extinção da escravidão do Brasil, a Corrente Astral de Umbanda já trabalhava incessantemente para que, em momento oportuno, pudesse materializar o Culto que levaria o mesmo nome, mais uma flecha projetada para reverter a tragédia psíquica que se abateu sobre milhões de pessoas. Tentem imaginar, se possível, a quantidade de indivíduos, de todas as cores, que encarnaram, desencarnaram e reencarnaram em solo brasileiro desde meados do século XVI até fins do século XIX, chafurdadas de dor, tristeza, desprezo, ódio, preconceito, discriminação, medo e desejo de vingança. Foi este cenário nefasto, cruel, maculado e de dimensão gigantesca que justificou um atento olhar do mundo espiritual para desdobramentos inimagináveis, caso novas ações não fossem tomadas para neutralizar hostilidades recíprocas impulsionadas por psiquês em desequilíbrio. 

    Aproximava-se cada vez mais o momento da Corrente Astral de Umbanda plasmar no plano físico o culto de caráter religioso, ou religião, como queiram, em terras brasileiras. As condições para tal acontecimento vinham se tangenciando há anos, fruto do trabalho de abnegados espíritos, conhecidos não por nomes, mas pelo extraordinário esforço de removerem obstáculos e suplantarem desafios para que um portentoso canal de comunicação entre o mundo espiritual e o físico adquirisse forma, visibilidade, alcance e eficiência, possibilitando a concretização dos ditames da Espiritualidade Superior, que via o Movimento como uma oportunidade ímpar de contato, tolerância, conciliação, perdão e união entre os inúmeros espíritos de lados opostos, inimigos, desafetos, de bandas distintas e desconexas. 

    Dentre as muitas decisões de peso da Corrente Astral de Umbanda, podemos destacar três, sem medo de errar, que tiveram grande impacto na fase que antecedeu a anunciação do Novo Culto, da nova Religião, pois estavam diretamente relacionadas a tornar público no plano físico o advento do que conhecemos como Umbanda. A primeira decisão a tomar dizia respeito a quem seria o espírito indicado e lançado na esfera terrena, em nobre e inédita prerrogativa, como porta-voz da Corrente Astral de Umbanda, dando conhecimento aos encarnados do que estava chegando da Espiritualidade, comunicando o início do Movimento Religioso, suas bases, diretrizes, caraterísticas e outras informações relevantes, importantes ao entendimento básico das pessoas que travariam contato com algo novo, nunca visto. Apenas por suposição, e não temos conhecimento para avançar na questão, muitos espíritos dignos e capacitados a assumir tal responsabilidade devem ter sido lembrados para estarem à frente da grande missão a cumprir. Os mentores da Corrente Astral de Umbanda optaram por indicar um espírito que tinha laços estreitos com o Brasil, inclusive com encarnações como homem branco e homem indígena, e que conhecia bem os horrores do período escravocrata. De elevado nível evolutivo, submeteu-se voluntariamente a readequar temporariamente sua faixa vibratória ao plano terreno, essencial a suas tarefas como espírito que utilizaria o fenômeno da incorporação (acoplamento) como meio de comunicação com os vivos. E este elevado espírito incumbido do honroso encargo de anunciar o novo culto, e muito conhecido no mundo espiritual por seu trabalho missionário em uma de suas encarnações, tinha um nome: Gabriel Malagrida. Como sabemos? Vamos abrir exceção no rigor cronológico do texto para respondermos, mas será bem suscinto. Pinçaremos o estritamente necessário da História da Umbanda para tal: 

    Parte do diálogo entre um médium vidente e o Caboclo das Sete Encruzilhadas durante a sessão que ocorreu na sede da antiga Federação Espírita do Rio de Janeiro, em Niterói – RJ, em 15 de novembro de 1908: 

Médium – Quem é você que ocupa o corpo deste jovem? 

O espírito – Eu? Eu sou apenas um caboclo brasileiro. 

Médium – Você se identifica como um caboclo, mas eu vejo em você restos de vestes clericais. 

O espírito – O que você vê em mim são os restos de uma existência anterior. Fui padre, meu nome era Gabriel Malagrida. Acusado de bruxaria fui sacrificado na fogueira da Inquisição por haver previsto o terremoto que destruiu Lisboa em 1755. Mas, em minha última existência física, Deus concedeu-me o privilégio de nascer como um caboclo brasileiro. 

    E por que o espírito conhecido como Gabriel Malagrida foi apontado como aquele que seria o ponta-de-lança, o porta-voz, o emissário que tornaria público no plano terreno o surgimento de um novo culto, de um novo segmento religioso? Podemos extrair a resposta do próprio diálogo que acabamos de reproduzir. E salientamos: As causas que motivaram sua escolha, além das qualidades e capacidades que lhe eram inerentes, foram duas: O trabalho missionário no Brasil direcionado aos indígenas, várias vezes e em épocas diferentes, e o fato de que em sua última encarnação foi um caboclo brasileiro (dialógo entre o médium vidente e o espírito), o que lhe possibilitou uma  longa vivência física entre os índios, tanto como homem branco quanto como um indígena, obtendo uma experiência privilegiada e sob ângulos diferentes. 

    Para aqueles que se interessarem na biografia do Padre Gabriel Malagrida, a internet tem um vasto acervo sobre o religioso. 

    Cumprindo com o estabelecido, retornemos ao assunto mantendo a cronologia na exposição dos fatos. 

    Decidido qual o espírito que teria a primazia de anunciar, coordenar, orientar, organizar e difundir no plano terreno a nova religião, o novo culto, outra resolução precisava ser tomada: Sob que arquétipo o porta-voz da Corrente Astral de Umbanda deveria se apresentar no plano físico? Ora, tendo em vista que o novo Movimento Religioso de cunho mediúnico seria plasmado no Brasil, tendo em consideração que antes da chegada dos colonizadores o lugar era habitado por indígenas, e a fim de realçar a genética (essência) brasileira do culto, nada mais justo e coerente que a forma arquetípica indicada ser aquela extraída dos povos que aqui já se encontravam quando os navegantes portugueses ancoraram suas embarcações. E assim foi deliberado pelo colegiado de espíritos da Corrente Astral de Umbanda que o missionário espiritual se apresentaria sob o arquétipo Caboclo no mundo físico. 

    E quanto ao médium através do qual o espírito missionário atuaria para revelar ao mundo o advento de um novo culto, de uma nova religião? Como foi escolhido? Que critérios foram levados em consideração pela Espiritualidade para que tamanha responsabilidade fosse passada a um encarnado e aceita por ele? Não temos resposta para estas indagações, mas consideramos ter sido rigoroso o processo de seleção para designar um ser humano para a grande tarefa de ser o intermediário entre o capitaneador espiritual do novo Movimento Religioso e o mundo dos vivos.  

    Finalmente as condições, tanto no plano espiritual quanto no plano material, chegavam ao patamar de convergência ideal para disparar a próxima fase da complexa e fraterna edificação erguida pelo plano astral; o ano era 1908 e a Corrente Astral de Umbanda dá sinal verde para a fase terrena. Duas figuras de relevo, cada qual dentro do seu campo de ação, emergem, materializando o surgimento da Umbanda-religião:  O porta-voz espiritual que se identificou como Caboclo das Sete Encruzilhadas e o médium Zélio Fernandino de Moraes, um jovem de 17 anos… 

    Esperamos que o texto apresentado seja um farol a iluminar mentes e corações, de maneira a fazer compreender que a Anunciação da Umbanda no plano físico não foi uma ação improvisada, feita à toque de caixa. Não, estimados leitores. A elaboração e solidificação para que ocorresse notável acontecimento percorreu séculos do tempo terreno, e todos os detalhes foram minuciosamente observados, indispensáveis à chegada de nossa querida religião.  

    No que tange a história completa da Anunciação da Umbanda no plano físico, bem…vocês já conhecem. 

    Saravá, Umbanda!!