Umbanda Hoje

UMA PALAVRA SOBRE O SINCRETISMO

Um dos assuntos que mais tem chamado a atenção daqueles que militam no Meio Umbandista e que tem causado uma grande confusão, principalmente na mente dos médiuns iniciantes, é, sem dúvida, o Sincretismo Religioso.

            Para entendermos melhor o processo de semelhança entre as divindades cultuadas pelo povo iorubá e os santos católicos, e seus reflexos dentro da Umbanda, necessário se faz voltarmos ao século XVI, período em que os negros começaram a desembarcar em Terras de Santa Cruz (Brasil). Abrimos parênteses para salientar que tal fenômeno não alcançou os escravos de origem banto (culto à Nkise/Mukixe) e fon/ewé (culto aos Voduns), uma vez que tais povos chegaram ao Brasil bem antes dos iorubás, período em que suas respectivas expressões de religiosidade foram brutalmente oprimidas.

            Ao chegarem ao Brasil sob o peso dos grilhões, equiparados a mercadorias e excluídos do gênero ser humano, os negros já carregavam em sua mente e em seu comportamento o sincretismo religioso proveniente dos conflitos havidos entre as diversas etnias do solo africano. Como elemento constituinte do processo de dominação pós-guerra, os vencedores tinham como estratégia sobrevalorizar as divindades que cultuavam, massificando aos derrotados o caráter superior do poder dos deuses por eles, os vencedores, louvados. Aproveitavam este mesmo estratagema e tratavam de menosprezar os deuses “derrotados”. Os vencidos aceitavam ou simulavam aceitar o panteão de divindades dos dominadores. Desta forma não abandonavam o culto a seus deuses, camuflados agora nas imagens das divindades “opressoras”, o que os fazia manter a religiosidade anterior, sem ir de encontro aos conceitos religiosos dominantes. Em algumas situações as Nações vencedoras, numa atitude “humanitária”, permitiam aos derrotados a continuação dos cultos nativos, desde que houvesse uma sobreposição das divindades “mais fortes”, vale dizer, da religião do ganhador.

            Observamos, ao lado do processo de sincretismo ocorrido em solo africano, outro mecanismo utilizado para enfraquecer e pulverizar a crença das várias Nações negras subjugadas e escravizadas: agora é o traficante que propositalmente deposita nos navios negreiros os escravos de diversas etnias, como tentativa de enfraquecê-los moral e religiosamente. Grupos rivais quase sempre se digladiavam, tentando impor um ao outro seus conceitos, hábitos e convicções. No entanto, mesmo neste cenário cruel, alguns escravos perceberam que todos estavam em situação semelhante e para sobreviverem era necessário se unirem, ou, ao menos, se tolerarem, surgindo deste contexto opressivo influências recíprocas no campo cultural e religioso.

            Tratados como máquinas pelos Senhores de Engenho, os escravos, nas poucas horas de descanso, praticavam rituais próprios de adoração e evocação de suas divindades, as quais chamavam de Orixás. No entanto, eram fortes a influência e a pressão que os sacerdotes católicos exerciam sobre os latifundiários, para que este os auxiliassem a destruir a religiosidade “pagã” dos negros, para “salvação” de suas almas. E esta aspiração dos sacerdotes de Roma em muito era benéfica aos senhores escravocratas, tendo em vista a constante preocupação com revoltas, indisciplinas e fugas por parte dos escravos.

            Diante da vigilância e repressão, os negros, inteligentemente, passaram a utilizar em seus ritos religiosos, até então proibidos, as imagens de santos católicos, que colocavam em seus altares, ocultando a representação de suas Divindades por sob as ditas estatuetas, transmitindo aos brancos a falsa idéia de conversão ao catolicismo e cultuação de seus santos. Paralelo a isto, os sacerdotes papais tentavam de todas as maneiras possíveis fazer com que os negros abandonassem seus cultos “politeístas”, valendo-se para este processo de aculturação religiosa das histórias de personalidades “santificadas” pela igreja católica.

            Aprenderam, por exemplo, que São Sebastião foi vítima de flechadas no interior das matas, assemelhando-o a Oxósse, o Orixá das matas, cujos símbolos são o arco e a flecha; que São Jorge tinha sido um centurião com muitos feitos militares na Roma antiga, assemelhando-o a Ogum, o Orixá protetor dos agricultores, o vencedor de batalhas, o deus do ferro, simbolizado na espada e na lança, acessórios utilizados pelos soldados de Roma; que São Lázaro teria tido seu corpo coberto de feridas (chagas) e voltado do mundo dos mortos, assemelhando-o a Omolu/Obaluayê, o Orixá da “morte” e responsável por doenças kármicas e/ou reajustadoras, em especial a varíola, patologia que causa abscessos no corpo.

            Outras semelhanças ou pontos de contato entre orixás e santos católicos advieram. De acordo então com o calendário católico para louvação aos santos, os escravos aproveitavam e reverenciavam suas divindades, primeiro para iludirem os brancos, segundo porque mesmo sendo oprimidos e maltratados muitos cativos respeitavam os cultos católicos.

            Deste histórico de sobrevivência religiosa é que surgiu o sincretismo religioso, semelhança entre Orixás e Santos, os primeiros, divindades africanas, os segundos, personalidades da igreja.

            Até aqui é notório que as religiões inseridas no contexto sincrético são o catolicismo e os cultos africanistas. Desta forma, a Umbanda jamais esteve presente no surgimento e difusão deste processo, pois sequer tinha sido plasmada como religião no plano físico.

            Em 15 de novembro de 1908, em Neves, então distrito de Niterói,  Estado do Rio de janeiro, um espírito missionário que apresentou-se como Caboclo das Sete Encruzilhadas manifestou-se na federação espírita daquele estado, utilizando-se da mediunidade de um jovem de 17 anos, Zélio Fernandino de Moraes. Este espírito anunciou o advento de um Movimento Espiritual (Corrente Astral) de amor e amparo ao próximo, encarnados ou não, sem preconceitos ou discriminações. No dia seguinte, 16 de novembro, o Caboclo das Sete Encruzilhadas tornou público o nome do novo segmento religioso: Umbanda, onde, através da intermediação físico-astral (mediunidade), uma gama incomensurável de espíritos poderia laborar em prol da humanidade.

            O equívoco começa quando algumas pessoas ligadas aos cultos africanistas ou afro-brasileiros (candomblés) iniciam um processo de imigração, ou interação para com a Umbanda, trazendo, além do nome de Orixás, as correspondências (sincretismo) entre suas divindades e as personalidades do catolicismo, resultando daí uma grande mistura de conceitos, bases, atributos, preceitos, e outros mais.

            Respeitamos os santos católicos que, diga-se de passagem, foram encarnados como nós, com virtudes e defeitos. Entretanto, devemos ter em mente que os mesmos são próprios da igreja católica, não do Candomblé, e muito menos da Umbanda. Por conta disto, apontamos também o crescente número de imagens (estatuetas) representativas de santos católicos utilizados nos Templos Umbandistas, cujos congás parecem mais altares de igreja.

            Não negamos que elas, as imagens, assim como os retratos e pinturas, funcionem para alguns como ponto de referência, de fixação, de concentração. O mais importante, contudo, é que os umbandistas tenham ciência que somente os nomes das divindades africanas respingaram na Umbanda, não os conceitos das Nações africanas em relação a seus deuses. De que o sincretismo deu-se entre os cultos africanos e o catolicismo para sobrevivência dos primeiros, e que o único benefício material auferido pela Umbanda através do sincretismo foi uma maior inserção social, naquela época eminentemente católica.

            Deixemos os Orixás, Nkices e Voduns para o Candomblé, de raiz iorubá, banto ou fon. Deixemos os Santos para a igreja católica. E passemos a dar mais atenção aos trabalhadores espirituais que congregam a Corrente Astral de Umbanda.

 

            Saravá Umbanda!