Umbanda Hoje

EU TE AVISEI

       Após mais uma Gira encerrada, em que as batidas nos tambores/atabaques cadenciaram harmoniosamente os Pontos Cantados entoados pelo trio de cambonos responsáveis, Lucas, o cambono-chefe, afrouxava o couro dos instrumentos de percussão, que por horas, tensionados, davam ritmo aos cânticos entoados naquela tarde de domingo. Agora era o momento de acondiciona-los em capas próprias e deixar que “descansassem”, até nova convocação.
            Dotado de uma excelente memória, além de boa voz e desenvoltura na percussão, Lucas se apresentava a terceiros, fora do terreiro, como Ogã. E o fazia com orgulho, sabedor que era peça importante dentro da engrenagem que movimentava os trabalhos da religião, não obstante as instruções ministradas pelo Dirigente, não só na época em que era um mero aspirante à corrente do terreiro, mas também em outras ocasiões, aulas doutrinárias mensais, e mesmo de forma particular, sem o alcance de ouvidos de terceiros, orientando-o a deixar de lado a praxe de se identificar como Ogã, e que se insistisse na afirmação, a teimosia poderia levá-lo a situações embaraçosas.
          Embora respeitasse as orientações doutrinárias do Dirigente, que exaustivamente ensinara, não só a ele, como a todos os integrantes da corrente mediúnica do terreiro sobre os porquês da inconveniência de nominar os cambonos de cânticos e de percussão de Ogãs, Lucas em suas visitas a outros Templos de Umbanda, conhecidos ou não, sempre arrumava um jeito para expor seus atributos musicais, nunca deixando de se apresentar com o título/cargo que não tinha direito de ostentar.
         Convidado por um amigo para um evento religioso que aconteceria na casa de um Babalorixá conhecido, Lucas aceitou prontamente o convite, pois nunca tinha pisado num terreiro de Candomblé. Seria a oportunidade de conhecer a religião e ver como funcionavam os ritos, uma vez que até aquele momento seu conhecimento se restringia a vídeos da internet e alguns comentários de terceiros. Ao saber do dia da festividade, um sábado, respirou aliviado, pois temia que pudesse haver incompatibilidade de dia e horário com as sessões do terreiro ao qual era vinculado.
          Passava das dez horas da noite, quando Lucas e Jonas, o amigo que fizera o convite, chegaram na Casa de Candomblé. O evento começara às oito horas, mas o amigo não pode encontrar Lucas na hora combinada. Cumprimentos daqui e dalí, Jonas apresentava o convidado como umbandista, que era cumprimentado com saudações tradicionais daquela religião. Acomodados em duas cadeiras, acompanhavam o desenrolar das atividades, ocasião em que Jonas explicava ao amigo o que acontecia no salão, o tipo de toque dado e as cântigas entoadas no dialeto yorubá.
          Duas horas depois, o evento foi dado por encerrado, e todos os convidados foram encaminhados para uma área destinada a confraternização, onde seriam oferecidos um pequeno jantar e bebidas. Rodas de conversas logo foram feitas e Jonas se integrou a uma delas, notadamente aonde se encontravam conversando descontraidamente alguns Ogãs que tiveram participação ativa nos toques e cântigas. Lucas, satisfeito por estar conhecendo o funcionamento de um templo candomblecista, foi apresentado a algumas pessoas que Jonas conhecia, e que estavam conversando no grupo.
         Os cumprimentos foram reciprocos no início, embora o quarteto de Ogãs da Casa logo percebessem que Lucas não era de Candomblé. Com discrição, trataram de conversar sobre outros assuntos para que o convidado de Jonas não ficasse constrangido com eventuais comentários; o dia era festivo, não havendo necessidade de se tocar em temas ritualísticos e doutrinários.
            Um quinto Ogã se juntou à conversa. Era de outro Barracão (Casa, Yilê) e fora convidado para contribuir com os Ogãs da Casa no toque e nos cânticos. Apresentado a Lucas, saudou-o com gestos e termos próprios. Lucas respondeu com um “Salve. Boa Noite”, no que notou a mudança de fisionomia do Ogã visitante.
          Não satisfeito o Ogã que chegara por último a roda de amigos, sem papas na língua, começou a indagar Lucas sobre várias coisas. Jonas estava atento às perguntas, mas não ousou interferir na conversa. Lucas foi perguntado de que Asé (Axé) era, quem o tinha apontado, suspenso e confirmado com Ogã, de qual Orixá era,  e qual a função principal que lhe foi atribuída na Casa em que fora confirmado. As perguntas eram feitas uma em cima da outra, sem dar tempo a Lucas de sequer “respirar”. Os demais Ogãs, que eram da Casa, começaram a interferir com pequenas frases, como “vamos mudar de assunto?”, “deixa disto, irmão” e outras expressões que tinham como finalidade “quebrar” a atmosfera criada pelo Ogã visitante.
            Lucas, ao final, respondeu ao interrogador que era Ogã de Umbanda. O Ogã que  havia questionado com uma bateria de perguntas, com um sorriso escarnecedor, disse-lhe que tal cargo não era de Umbanda e que ele, Lucas, teria que entrar para o Candomble, passar pelo Hunkó (Roncó – quarto onde acontece o recolhimento), sair para a sala em cerimônia pública e ser apresentado como Ogã, para aí sim, ostentar o título/cargo. Lucas, quase sem cor, ouvia, constrangido, as afirmações do estranho; nada falava, pois nada havia para ser dito. Finalmente, um Ogã da Casa, puxando o Ogã visitante, a quem conhecia, para um canto do pátio, interrompeu o massacre verbal direcionado a Lucas. Os demais Ogãs trataram logo de minimizarem a contenda, dizendo a Lucas que o tal Ogã gostava de discussões.
         Jonas ficou indignado com o comportamento do opressor, muito embora soubesse que ele estava com a razão, o que não era motivo para deixar seu amigo acuado como um passarinho assustado. Com a desculpa de que ia cumprimentar outros amigos, chamou Lucas para acompanha-lo, no que foi atendido. Sozinhos, Jonas disse ao amigo que não “esquentasse a cabeça” com o que havia acontecido e que pessoas desagradáveis e inconvenientes estão em qualquer lugar. Lucas, visivelmente aborrecido, pediu ao amigo para irem embora, no que Jonas concordou. Cumprimentos de despedidas a alguns foram direcionados e a brevidade já os colocava na calçada, rumo ao ponto de origem.
           Já em casa, as perguntas que lhe foram jogadas como um caminhão de pedras pontiagudas não saíam de sua mente. Na cama, rolava de um lado para o outro, pensando pela situação difícil que passara. Mesclava pensamentos de raiva e tristeza, mas tentava refletir e pescar algo de positivo do ocorrido; não conseguia pensar direito e o melhor remédio era tentar dormir; nos dias seguintes e mais calmo, poderia enfim, entender o que lhe acontecera.
           Mais tranquilo, uma vez que os dias subsequentes lhe deram o suporte temporal, sucifiente para colocar a cabeça no lugar, Lucas acabara de chegar ao terreiro para mais uma sessão de passes e consultas, em que os Caboclos e Caboclas estariam presentes para atendimento. Como ainda havia uma folga no tempo, resolver procurar o dirigente da Casa e contar o episódio desagradável por que passara. Seu Nilton estava na diretoria, e por certo o atenderia.
            _ Boa tarde, Dirigente Nilton. Posso entrar?        
            _ Linda tarde faz hoje. Entre, entre.
           Depois dos cumprimentos ritualísticos, Lucas, um pouco constrangido, repetiu ao dirigente tudo o que lhe acontecera por ocasião de sua visita à Casa de Candomblé. Nilton ouvia, atento mas tranquilo, a narrativa de seu cambono-chefe, que deu bastante destaque, repetindo, inclusive, algumas das desagradáveis perguntas que lhes foram direcionadas naquele dia.
            Um breve silêncio tomou conta da sala. O dirigente, com semblante serero, respirou profundamente, antes de comentar o que acabara de ouvir.
            _ Lucas, o que vou lhe dizer já é de seu conhecimento, mas não é demais repetir o que você já aprendeu nas aulas doutrinárias. O que esta pessoa mal-educada e inconveniente lhe disse é verdade; você sabe disso. E eu já tinha alertado sobre o perigo de se dizer que tem um título/cargo, quando a realidade é outra.
            _ É, o senhor já tinha dito…
        _ Não se envergonhe ou ache que ser cambono é menos nobre do que ser Ogã; não é mesmo, pode acreditar no que digo. Ambos são auxiliares e de extrema importância para o funcionamento de um Templo de Umbanda, neste caso os cambonos, e em uma Casa de Candomblé, no caso de Ogãs. Só que cada qual atua numa religião diferente, passa por ritos diferentes e tem muitas funções diferentes. Enquanto você fica batendo tambor ou atabaque, “puxando” cântigas em português, o Ogã tem que cantar em iorubá ou outro dialeto africano; enquanto você tira ritmo do couro como peça integrante da Gira ou Sessão, no Candomblé os Ogãs tem o dever de dar o toque do Orixás, no momento certo, e em sequência ritualística daquela religião. E mais: A iniciação de um futuro Cambono não tem as restrições e os sacrifícios por que passam os Ogãs. São atividades distintas, porém com escassos pontos em comum. Lucas, se apresente como você é; diga que é Cambono e faça o melhor em sua atividade, e ponto final.
            _ Eu sei, Seu Nilton. É que em muitos terreiros os batedores e os que cantam são chamados de Ogãs…virou um costume, e eu nunca havia notado nada de mal nisto.
            _ Eu sei que isto acontece, mas veja em que situação você se colocou por dar mais importância aos costumes do que à doutrina. Encare o que aconteceu, não como um castigo ou algo do gênero, mas como um lembrete, ainda que formulado de forma ríspida por um estranho, servindo positivamente para você daqui em diante.
            _ O senhor tem razão. Tenho que me condicionar a me apresentar como Cambono, curimbeiro… e deixar este negócio de dizer que sou Ogã de lado. Pequei e paguei pela teimosia…mas tudo é aprendizado. O senhor concorda?
            _ É isto mesmo. Bola pra frente, Lucas. A sessão daqui há pouco começa e quero vê-lo vibrando dentro de sua atividade. Tá certo?
           _ Sim, é isto mesmo. Vou trocar de roupa. Preciso esticar o couro dos instrumentos e reler aqueles Pontos novos que o senhor me passou. Obrigado, dirigente.
            Aliviado pela atenção e compreensão do Dirigente, Lucas se despediu, caminhando em direção ao vestiário. Em menos de dez minutos já estava no salão de trabalhos mediunico-espirituais, consciente da importância de ser um Cambono, seja ele um batedor de tambor/atabaque ou “puxador” de cantigas, seja ele aquele que atende às Entidades Espirituais, ou ainda aquele que fica orientando a entrada dos consulentes para passes e consultas, enfim dando o suporte necessário em qualquer setor, em qualquer situação em que seja importante e necessário ao bom e correto andamento dos trabalhos umbandistas.

            Saravá os Cambonos.

            Saravá Umbanda!