Umbanda Hoje

MEMÓRIA - Jornal Umbanda Hoje

EU ESTIVE LÁ

 Memórias de uma Visita Inesquecível

                Sexta-feira, 15 de outubro de 1999. Passava da meia-noite e eu não conseguia dormir. Não obstante o sono me acossar e os bocejos intermitentes aguarem meus olhos, a expectativa do que aconteceria no dia seguinte me era consorte na controlada ansiedade ante ao que estava por vir. Vez em quando olhava para o céu noturno e nublado, torcendo para que o dia seguinte não amanhecesse chuvoso; seria um desalento para mim se a viagem tivesse que ser adiada. Se acontecesse, jamais desistiria da empreitada planejada.

            O sábado seria puxado e o tempo para a aventura, exíguo, ante ao vai e vem que faria naquele frutuoso fim de semana; acordar descansado para dirigir era necessário.

             Antes de prosseguir, faço aqui justiça a Antônio Eliezer Leal de Souza, jornalista e escritor do início do século XX, que tinha uma coluna intitulada “No Mundo dos Espíritos”, no jornal À Noite, extinto vespertino carioca. Naquele periódico, em 07 de maio de 1924, publicou uma matéria sobre a TENSP, tendo em seu corpo uma foto da fachada do imóvel aonde a Umbanda foi anunciada. À época o citado jornalista sequer sonhava em ser umbandista.

            Certo é que eu  perpetuaria em fotos o casarão onde a Umbanda se apresentou ao plano físico pela ação missionária de uma entidade espiritual escolhida pelo Plano Astral para anunciar o advento da religião, Caboclo das Sete Encruzilhadas, local em que também foi fundado o primeiro templo de Umbanda, Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade, cujo imóvel, ocupado por parente colateral (sobrinho-neto) de Zélio Fernandino de Moraes, resistia, firme, embora cansado, como memória do sopro divino que por lá pairou em novembro de 1908, deixando no plano terreno as bases de uma religião genuinamente brasileira. Concretizava-se naquele longínquo 16 de novembro do mesmo ano o que havia sido revelado pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas no dia anterior – o advento de um novo Culto -, em uma das sessões que aconteciam no espaço franqueado a Centros Espíritas sem sede pela antiga Federação Espírita do Estado do Rio de Janeiro, em Niterói: A Umbanda.

            Como umbandista, médium e presidente do Jornal Umbanda Hoje, via-me profundamente sensibilizado pelo que estava por acontecer: A alegria, a satisfação por pisar no solo, percorrer os cômodos e tocar o imóvel em cujas dependências a Umbanda surgiu, religião que abracei como instrumento de conexão com a Espiritualidade e filosofia de vida; imaginar a atmosfera espiritual que orbitava no local na noite de 16 de novembro de 1908, ocasião em que um jovem de 17 anos, com planos insipientes para sua vida, cedeu sua mediunidade para que a entidade espiritual Caboclo das Sete Encruzilhadas cumprisse o que lhe fora outorgado pela Espiritualidade – a família Moraes ficara atônita com a situação – e que no mesmo dia fundou o primeiro Templo de Umbanda, Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade. E mais: Era a oportunidade de documentar e difundir pelo periódico impresso que dirigia o que há muito tempo já era de conhecimento do Movimento Umbandista. Faltava menos de um mês para a data de comemoração da anunciação da religião e não perderia o momento de lançar as fotos que estava por obter na próxima edição do jornal, cuja distribuição se daria no início de novembro de 1999.

           Em meu “possante” Fiat Uno ELX, já percorria a rodovia Washington Luiz, usualmente chamada de “Rio-Petrópolis”, por volta de 9h. O tráfego me surpreendeu – estava intenso para um sábado – e demorei mais do que o habitual para entrar na Rio-Teresópolis, seguir até Parada Modelo, bairro de Guapimirim, e de lá, através da rodovia Rio-Friburgo, chegar aos limites de Cachoeiras de Macacu; era meu caminho preferido. O tempo estava nublado, mas não dava indícios que choveria. Durante a viagem os pensamentos que me tomaram a noite anterior, recorriam sem parar. E lá estava eu, pensando e repensando na importância que o dia teria para mim, para os leitores do Jornal Umbanda Hoje e para inúmeros umbandistas, que só sabiam da existência do casarão por textos, que por mais detalhes que inserissem, não conseguiam fixar na imaginação de quem os lessem como era o imóvel, suas características, localização visual, se estava em ruínas ou não, e outras indagações. Com fotos o patamar seria diferente. Não haveria dúvidas nem especulações; eram as imagens do imóvel. Fato! A partir das fotos, acreditei, é que os filhos de Umbanda poderiam ter maior nitidez do contexto pertinente ao surgimento da religião.

            A viagem foi tranquila e eu estava dentro do tempo-limite para chegar a Boca do Mato, bairro de Cachoeiras de Macacu – RJ. Lá me esperando uma distinta e jovial senhora, sempre alegre, sorridente, extrovertida e de grande coração: Zélia de Moraes. Conheci esta irmã de umbanda quando a Tenda Nossa Senhora da Piedade funcionava nas dependências da Tenda Espírita São Jorge, um dos sete templos fundados sob a orientação do Caboclo das Sete Encruzilhadas. Pelas informações que tenho ainda funciona na Rua Senador Nabuco, em Vila Isabel, bairro da zona norte do Rio, próxima à Praça Barão de Drumond, antiga Praça Sete. Quando a ela fui apresentado, recebi um demorado e afetuoso abraço, que retribuí na mesma intensidade, é claro. A sensação no momento era a de que nos conhecíamos há muito tempo e estávamos nos reencontrando, tal a espontaneidade com que nos cumprimentamos. Foi neste mesmo terreiro que também conheci Zilméa de Moraes. Ainda que com perfil mais reservado do que a irmã, foi solícita e me recebeu de forma carinhosa. Daquele dia em diante os laços de amizade com estas duas senhoras, filhas de Zélio Fernandino de Moraes, se estreitaram rapidamente.

            Voltando à estrada, e já em Cachoeiras de Macacu, o centro da cidade ficara para trás e alguns quilômetros depois já avistava a placa indicativa de Boca do Mato. O lugar me era conhecido, uma vez que estivera por várias vezes na Cabana de Pai Antônio. A rua de entrada era estreita e logo fazia uma curva a direita, seguindo-se um pequeno declive para terminar em outra rua, esta sim, de importância singular. À esquerda, poucos metros à frente, a Cabana de Pai Antônio. À direita, a Travessa Zélio de Moraes, curto caminho até a chácara da família Moraes, morada em que Zélio e a esposa, Maria Isabel de Moraes, viveram por muito tempo.

           O portão de garagem estava aberto e, com licença antecipada, entrei dando três buzinadas, estacionando no grande pátio que fronteava o imóvel. Já conhecia a residência, uma vez que por diversas ocasiões estivera com Zélia, a convite, saboreando o almoço e o café da tarde oferecidos. A casa, espaçosa, arejada e muito bem cuidada, tinha um varandão de ponta a ponta, com rede para descanso, mesinhas, cadeiras e sofás, e os inúmeros vasos com plantas que ornamentavam o aprazível espaço. Não muito longe o rio macacu deslizava suas águas cortando a mata atlântica que dominava a paisagem.

            Deixando o carro eis que vejo saindo pela porta principal, sorrindo, Zélia de Moraes. Fui agraciado com um forte abraço e beijos fraternos, que retribuí. Lembro bem do que ela disse: “Bom dia, meu filho. Fez boa viagem? Tomou café?”. Respondi que sim, além de perguntar se estava bem e da sua disposição para a maratona. Não pude deixar de reparar: Zélia estava impecavelmente arrumada; seu perfume dominava meu olfato e sua fisionomia espelhava vigor de dar inveja a muitos jovens.

           Aceitando um cafezinho, sentamos à mesa e conversamos sobre amenidades, aguardando que a “secretária” de Zélia trouxesse o néctar negro, acompanhado de alguns quitutes próprios do desjejum. Não resisti e além de duas xícaras de café saboreei, ainda que moderadamente, um pedaço de bolo caseiro. Enquanto a filha de Zélio de Moraes insistia que eu comesse mais uma fatia, pensava que a primeira etapa de propósito maior tinha sido concretizada. Não demorei a retornar à realidade; o tempo era curto e não podíamos nos demorar. O telefone toca. Era Zilméa, que perguntou à irmã se eu já tinha chegado. Zélia confirmou, dizendo que sairíamos em poucos minutos. Mais algumas palavras trocadas entre as irmãs e a conversa encerrou. Despedindo-me da colaboradora, tratei de acomodar Zélia no banco do carona, ajeitando o assento, o encosto da poltrona, e fixando o sinto de segurança. Embora o céu continuasse nublado a claridade incomodava. Desviando o olhar para dar um adeus gestual à secretária – acho que seu nome era Lúcia ou Ana, não tenho certeza – quando voltei minhas atenções para dentro do carro, eis que observo Zélia, agora usando óculos de sol de design arrojado. Dei um sorriso, dizendo-lhe que  estava “estilosa”.

          Durante o percurso para a popularmente conhecida como “terra de Arariboia” conversamos muito. E Zélia soltava sempre um acontecimento importante em relação à Umbanda, ao Caboclo das Sete Encruzilhadas, o Chefe, como é chamado pelo corpo mediúnico da casa, e sobre a Tenda Nossa Senhora da Piedade. Confesso que me arrependi de não ter gravado nosso bate-papo; o minigravador estava ao alcance das mãos, mas fiquei centrado no que ela relatava. Resultado: Não perpetuei sua fala.

            A segunda fase estava em curso. Destino: Icaraí, bairro de Niterói e no qual residia Zilméa de Moraes. Assim como a irmã, se dispôs prontamente, tão logo revelei meus planos, a fazer parte da comitiva para Neves, São Gonçalo-RJ. Zilméa e Zélia não iam ao local fazia tempo; era o momento oportuno para reverem Carlos, seu sobrinho, e sua esposa,  e serem as intermediárias entre eu e os atuais proprietários do imóvel, explicando-lhes o porquê de um desconhecido estar ali com intenção de fotografar a casa. Certamente não franqueariam a entrada se eu, um estranho, aparecesse por lá, mesmo dizendo-se amigo das irmãs Moraes, e relatando a importância da construção na história da Umbanda.

            Parei em frente ao prédio, na Avenida Almirante Ary Parreiras. Mal abri a porta do carro para pedir ao porteiro que avisasse Zilméa que a aguardávamos, e ela, certamente esperando no hall, apareceu acenando com uma das mãos. Como a irmã, também estava muito bem trajada e de óculos de sol. Abraços e beijos fraternos, agora o trio estava completo. A segunda etapa estava cumprida e agora, entre conversas amenas e brincadeiras, enfim seguíamos em direção ao destino mais importante da aventura: Rua Marechal Floriano Peixoto nº 30 (numeração antiga), em Neves.

           O percurso não era longo e pelos meus cálculos chegaríamos em, no máximo, trinta minutos, pois o município de São Gonçalo é colado a Niterói, e a rota por mim estabelecida facilitaria nossa chegada. Zélia continuou no banco do carona. Zilméa agradeceu, pois tinha a sua disposição todo o banco de trás. Não tardaram a colocar a conversa em dia, especulando como estavam os parentes de lá, o estado da casa, se o bairro tinha progredido. Citavam nomes de pessoas e fatos desconhecidos para mim. Enquanto papeávamos, olhava discretamente pelo retrovisor interno e para o lado, pensando: “As duas filhas de Zélio estão aqui, dentro de meu carro, que alegria. Elas confiam em mim, como pessoa, e no trabalho que realizo através do Jornal Umbanda Hoje. Agradeço a Espiritualidade por este momento único”.

            Passava das 14h quando entramos na Rua Marechal Floriano Peixoto. Embora o nome permanecesse o mesmo por 91 anos , a numeração sofrera alteração substancial da prefeitura.  Pulou de 30 para 864, mas nada que diminuísse a importância do imóvel. O que me interessava estava lá, fincado sobre um solo de valor histórico para os umbandistas.

           Com o carro em baixa velocidade, eu olhava os dois lados da rua, tentando identificar o imóvel a partir das poucas informações que tinha. Zélia e Zilméa estavam tranquilas; nada de esboçarem ansiedade. Chamou-me a atenção uma torre de telefonia, quando Zélia tocou no meu ombro e apontou: “A casa é neste muro branco; olha ela lá. Estacione em frente” – completou. Meu coração se descompassou. As batidas se aceleraram ao ver, ao fundo, entre as folhagens  dos arbustos que se espalhavam pela parte frontal do terreno, a edificação. Estava pintada da cor salmão, mas desgastada pelo tempo.

            Fui o primeiro a sair do carro, abrindo as portas do lado contrário para que Zélia e Zilméa pudessem descer. Rapidamente peguei uma pequena mochila em cujo interior continha duas máquinas fotográficas, filmes, o minigravador, pilhas, baterias, bloco de notas e outras coisas. Em curtíssimo tempo o portão é aberto e somos recebidos por uma senhora, esposa de Carlos, sobrinho-neto de Zélio – o nome me fugiu à memória. Depois de se cumprimentarem, Zélia me apresentou a dona da casa, dizendo: “Este aqui é o Marco que te falei. É amigo da família”. Retribuí a saudação da coproprietária, acompanhando as três pelo terreno frontal, em direção ao imóvel. As dimensões do lote eram consideráveis; Cerca de 20 metros de testada (frente) por uns 50 metros de fundos. Do portão até o casarão dava uns 10 a 12 metros, e para transpô-los, confesso, demorei bastante. Meus passos eram lentos, muito lentos, e não parava de olhar para a fachada da construção, em cujo interior a Espiritualidade semeou a Umbanda no plano terreno. A posição da casa – não ficava em centro de terreno, mas do lado direito de quem observava da rua -, porta principal, as janelas, os degraus ao centro, os detalhes arquitetônicos, tudo era minuciosamente visto por mim. Emocionado, um turbilhão de pensamentos sacolejava minha mente; estava feliz e sorria para mim mesmo, de forma contida, com os olhos vidrados na centenária e remanescente residência da família Moraes.

            Distraído, fui chamado por Zélia, encostada na mureta da entrada lateral. Zilméa já estava acomodada no interior. Parei na varandinha, antes de entrar na sala, pensando ser ali o local em que o Caboclo das Sete Encruzilhadas se expressou. Não passava de especulação, mas Zélia logo desfez a minha dúvida, dizendo: “Foi aqui, Marco. O chefe (C7E) incorporou em papai aqui, bem no centro desta sala”. Zilméa estava sentada em uma das cadeiras. Olhei para ela, ela olhou para mim e balançou a cabeça positivamente. A dona do imóvel estava na cozinha coando café. Aproveitei sua ausência e olhei detidamente para cada canto daquele cômodo – sofrera reformas ao longo do tempo, mas ainda sim o espaço era o mesmo. Fixei-me no ponto central da sala sem palavra alguma dizer, só imaginando o cenário de 16 de novembro de 1908: Uma segunda-feira, à noite, e o jovem Zélio reunido com a família; membros da sessão espírita que ocorrera na Federação Espírita de Niterói, presentes para confirmarem o que havia sido prenunciado por um espírito que “baixara” no dia anterior naquela instituição, vale dizer, o advento de um novo culto; e a residência, tomada por vizinhos e estranhos que de alguma forma souberam do que estava por acontecer.

            A esposa de Carlos retornou da cozinha com o café e as xícaras. Com algum esforço voltei à realidade. Seria deselegante, ou mesmo inconveniente, permanecer em estado de reflexão na frente da coproprietária, que não tinha ligação alguma com a religião – era católica, segundo apurei -, e que encarava o imóvel somente como sua residência, e que mesmo sabendo dos acontecimentos de 1908, não dava a mínima importância ao fato, o que era compreensível.

            Depois de servido o café fui autorizado a tirar as fotos do imóvel, enquanto as três conversavam sobre assuntos diversos. Pedi licença e agradeci pelo gesto de boa vontade, saindo em direção à frente da casa. Antes de começar a clicar, parei em frente à fachada. Agora estava sozinho, sem olhares que pudessem me constranger a ter uma conduta diversa. Olhava detidamente para cada detalhe do casarão; nada escaparia à minha atenção. Toquei o imóvel? Sim, claro. Um ato simbólico, mas importante para mim como umbandista. Não deixaria de curtir, aproveitar, usufruir, deleitar-me com aquela oportunidade, talvez a única que eu teria para estar ali, de coração aberto e feliz por ter realizado um sonho acalentado durante anos. E não era só isto. Havia outra questão digamos “apocalíptica” em relação ao destino do casarão: Decorridos mais de 90 anos desde o evento histórico, ninguém, pessoa física ou jurídica (umbandistas abastados, Federações/Associações de Umbanda etc.), tinha se levantado para fazer algo em relação a instituir o lugar em um ponto de luz histórico para a Umbanda. Fui às entranhas procurando me lembrar de alguma notícia, matéria, conversa ou plano de compra do imóvel por umbandistas de posses, ou a criação de um grupo de terreiros que instituiria contribuições mensais, rigidamente controladas e auditadas, que pudessem fazer caixa suficiente para apresentar uma proposta de compra e transforma-lo no referencial número um da Umbanda; em vão. A preservação do imóvel seria uma prova inequívoca do esmero que teriam com a história da religião, e a oportunidade de proporcionarem aos umbandistas que não conheciam a fundo a história da Umbanda e a importância da casa, bem como aos umbandistas jovens, novatos na religião, do presente e do futuro, o prazer, a satisfação, o orgulho de conhecerem onde tudo começou e onde foi fundado o primeiro templo de Umbanda. Não sabia se um dia tal empreitada seria realizada. Em verdade, pendia mais para uma tragédia (venda do terreno para construtoras, ou para pessoas físicas completamente insensíveis e/ou desconhecedoras da importância daquele espaço). Na dúvida, tinha que sorver aquele momento aprazível e consumi-lo da melhor forma possível, ficando com a consciência tranquila, caso um desastre acontecesse. E aconteceu! O imóvel foi vendido e a edificação demolida, em 2011.

           Continuando…

            Tirei uma das máquinas da mochila, uma samsung; é a que daria as melhores fotos. Se houvesse algum imprevisto, tinha uma câmera de reserva, que me daria fotos de qualidade razoável. Procurei o filme colorido para introduzi-lo na máquina e eis que reviro todo o “bornal” e nada de acha-lo. Só pegava filmes em preto-e-branco – gostava também de fotos p/b -, mas não era minha intenção, a priori, reproduzir imagens de tão alta significância em preto e branco. Abri o portão, fui ao carro, revirei tudo e nada. Tinha esquecido os dois filmes que me dariam fotos coloridas. Por segundos fiquei sem chão. Olhava para um lado, para o outro, e sabia que por perto não haveria lojas de revelação e vendas de filmes.

           Voltei para o interior do terreno e disse para mim mesmo: “Use o que você tem, e não ‘chore o leite derramado’; não vai adiantar”. Passei a fotografar em preto-e-branco, de diversos pontos, mas ligeiramente desapontado com o esquecimento dos filmes – lembrei depois que os tinha deixado em recipiente à parte, em cima da mesa do escritório. Ia juntá-los ao restante do material, mas neste meio tempo me distraí -; a situação era irreversível. Retomei as fotos, tirando duas ou três do mesmo ponto, por precaução; usei o filme todo. Rebobinei e guardei cuidadosamente o rolo. Um novo filme foi colocado na máquina fotográfica. Desta vez ela seria utilizada com Zélia e Zilméa; nada mais justo que eu captar a imagens delas ao lado da casa em que surgiu a Umbanda e foi fundada a Casa-Mater da religião, a Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade.

           Retornei à sala e reparei que a coproprietária não estava por perto. Precisava ser rápido. Posicionei a máquina e na primeira foto de Zélia e Zilméa, peguei-as em pé, atrás do sofá, e a foto foi tirada. Depois vieram para a varanda, perto da entrada, e a segunda foto tirada. Precisava que elas estivessem na frente do casarão para novas fotos. Toparam na hora e três fotos foram batidas. Agora sim, o ciclo se completara; Zélia e Zilméa retornaram à sala. Depois disso dei uma relaxada e pude me juntar às três senhoras e dialogar serenamente; um enorme peso tinha desaparecido de meus ombros, uma leveza pairava sobre minha alma. Uns trinta minutos a mais de bate-papo, em que eu, inclusive, dei uma consulta informal à dona da casa sobre questões relativas a um Inventário que estava em curso, e estávamos prontos para partir. Agradeci a acolhida, o carinho e a atenção que me foi dispensada naquela tarde, deixando votos de saúde e paz àquela senhora. Zélia e Zilméa também se despediram, e, em poucos minutos estávamos dentro do carro.

            A tarde começava a se despedir e o caminho de retorno a Cachoeiras de Macacu reclamava nossa volta. Estando as duas dentro do carro, começaram a me perguntar. Primeiro foi Zélia que disse, “Gostou, Marco? Foi tudo bem, né?”. Zilméa completou, me indagando: “Marco, tirou todas as fotos que queria? Valeu à pena?” Respondi, dizendo-lhes que estava muito feliz de tudo ter dado certo. Não me contive e dei um abraço e um beijo na face de Zélia. Contorci-me, jogando meu corpo por entre as poltronas, alcançado Zilméa, que também abracei e beijei. A estrada nos esperava, e agora nós a percorreríamos cobertos pelo manto de incontida felicidade.

           O entardecer se despedia quando chegamos a Boca do Mato. Zilméa ficaria na casa da irmã no restante do sábado e no domingo. O convite para um cafezinho foi feito, e mesmo preocupado com o estado físico delas, afinal eram duas senhoras, aceitei, firmando pensamento que não demoraria mais que o suficiente. As irmãs Moraes estavam cansadas; foi o que notei pela fisionomia de ambas. Conversamos um pouco e me despedi, renovando o agradecimento às duas pelo que fizeram por mim. Abracei-as carinhosamente, dando um beijo em cada uma e dizendo que nos veríamos em breve, como de fato ocorreu. Deixando a chácara, me despedi acenando para elas, que estavam na varanda observando eu partir. Voltava para a capital, sereno e em paz.

            Na primeira semana de novembro, mandei imprimir o jornal, com tiragem de cinco mil exemplares, na gráfica da Tribuna da Imprensa, na Rua do Lavradio, centro do Rio. E lá estavam, não só a matéria principal – a História da Umbanda -, mas as imagens do casarão, captadas por mim naquele sábado inesquecível.

           Dias depois e eu com o Fiat Uno abarrotado com a maior parte dos cinco mil exemplares, comecei a distribuir o Jornal Umbanda Hoje por toda a cidade do Rio de Janeiro. Foram quatro dias de intensa correria; cansava, mas era uma satisfação sem igual. No final todas as casas de artigos religiosos cadastradas das zonas norte, sul, oeste, centro da cidade, e das cidades de Nova Iguaçu e Caxias estavam abastecidas com uma quantidade considerável de exemplares, que seriam mais tarde distribuídas aos umbandistas e simpatizantes da religião que faziam suas compras naqueles estabelecimentos comerciais. Um lugar em especial, no entanto, jamais seria esquecido por mim; exemplares do periódico tinham sido separados carinhosamente e teriam destino certo: Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade, que funcionava à época na Rua Teodoro da Silva, no bairro Grajaú – RJ.

            Em novembro do mesmo ano (1999), numa quarta-feira, salvo engano, com incontida alegria, estacionei em frente ao sobrado em que funcionava a TESNP, na rua Teodoro da Silva. Peguei suficiente quantidade de exemplares e subi as escadarias, que já estavam movimentadas, com médiuns e assistentes em trânsito. Chegando com certa antecedência, teria a satisfação e a felicidade de conversar com Zélia e Zilméa e lhes mostrar a edição do Jornal Umbanda Hoje alusivo aos 91 anos da Umbanda. Cumprimentei alguns médiuns da casa que já me conheciam e perguntei se Zilméa e Zélia já tinham chegado. Para meu alívio as irmãs Moraes se encontravam no terreiro, em sala própria, por certo acertando os detalhes da sessão. Uma médium guarnecia o compartimento, cuja porta estava fechada. Apresentei-me e perguntei-lhe se Dona Zélia e Dona Zilméa poderiam me receber. Fui informado que elas estavam ocupadas e naquele momento não podiam atender ninguém. Agradeci a informação e esperei no corredor que elas ficassem acessíveis. Uns 15 minutos se passaram e alguém, do lado de dentro, abriu a porta: Era Zélia. Quando me viu, abriu um sorriso característico e disse: “Marco, você veio! Entre, entre”. Abraços e beijos dados e recebidos, apresentei o jornal, aguardando a reação das duas. Elas passavam os olhos em todas as folhas, mas sempre voltavam e fixavam na matéria principal. Olhavam, olhavam, e sorriram para mim; estava aliviado. Ter a chancela de Zilméa e Zélia era muito importante, pois estiveram presentes quando tirei as fotos que agora estavam estampadas no periódico, e que milhares de pessoas já tinham tido acesso, além, claro, de serem filhas de Zélio Fernandino de Moraes. O silêncio foi interrompido. Zilméa foi a primeira a se manifestar, parabenizando-me pelo trabalho. Zélia me abraçou, dizendo: “Que maravilha, meu filho. O chefe (C7E) e papai estão felizes com o que você fez”. Sorri para as duas, agradecendo. Zélia perguntou se eu tinha trazido mais jornais; disse que sim, apontando para mais de uma centena de exemplares acondicionados em um saco plástico transparente. Abriu a porta e chamou a médium do lado de fora, pedindo-lhe que chamasse um cambono – não sei o nome – para fazer um favor para ela. Fui convidado a tomar um cafezinho com as duas, no que aceitei. Duas batidas e a porta aberta, com o cambono entrando. Zélia pediu que ele distribuísse os jornais, primeiro para os médiuns, depois para os assistentes, e deixasse o restante sobre uma mesinha na entrada, para que os que chegassem depois também pudessem pegar. Agradeci a confiança e disse que ficaria do lado de fora para que elas se aprontassem ou fizessem outras coisas. Zélia perguntou se eu ficaria; disse sim, pois não perderia a sessão especial que estava para começar. Abracei-as e saí, fazendo um giro pelo terreiro. Encontrei alguns amigos, parei para conversar, mas uma coisa me chamou a atenção: Médiuns e assistentes estavam lendo o jornal, o que me levou a uma alegria contida e a um sentimento de satisfação pelo dever, ou melhor, prazer de missão cumprida. Aguardei o começo da sessão, sentando em uma das cadeiras da assistência. Ali, entre amigos, conhecidos, e estranhos, observava a movimentação de médiuns para o início dos trabalhos. Zélia e Zilméa entraram por último no salão. Ao vê-las passarem perto de mim, sorri. Elas sorriram e me mostraram, discretamente, que seguravam um exemplar do Jornal Umbanda Hoje.

            Estive no imóvel, mais uma vez; não foi planejado. Passava pela rodovia Niterói-Manilha em direção ao Rio, acompanhado de um amigo, quando, de supetão, resolvi entrar em Neves. Cheguei rápido ao endereço e bati palmas, sendo recebido pelo Carlos, sobrinho-neto de Zélio, que estava sozinho em casa. Como já me conhecia, entrei e pedi para bater fotos adicionais; ele não se importou. Ah! Ia me esquecendo de citar que o único filme que dispunha, e já parcialmente usado, era preto-e-branco.

           Como disse, o terreno foi vendido e o casarão demolido. Quem o adquiriu, para fins comerciais (ramo de alumínio), não sabia da importância do imóvel na história da Umbanda. Deu continuidade ao seu projeto, afinal já tinha investido dinheiro e tempo para alcançar seus interesses. Da edificação só sobraram fotos e a felicidade de quem lá esteve. Que o fato sirva de alerta aos umbandistas do presente e do futuro!

            Minhas queridas Zélia e Zilméa de Moraes já há algum tempo retornaram à Espiritualidade; nunca as esquecerei. A elas, com saudades e amor fraternal, minha eterna gratidão. Foram elas, as irmãs Moraes, que me proporcionaram visitar o casarão e guardar na lembrança e em fotos que Eu Estive Lá!

            Saravá Umbanda!

 

               Marco Valério Pellizer
             Editor do JUH

FOTOS HISTÓRICAS

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